sábado, novembro 04, 2006

Variações sobre o mesmo tema 5

Concluindo as variações que me ocuparam durante esta semana, refiro-me a fadistas com mais ou menos anos de carreira e que estão, como outros a que já me referi, a tentar construir uma carreira pautada por padrões de qualidade.
Ana Moura, Miguel Capucho, Joana Amendoeira e Pedro Moutinho, são exemplos que estão muito longe de esgotar a lista.
No entanto, para encerrar estas despretenciosas (e se calhar maçadoras) divagações sobre um dos meus gostos musicais (claro que tenho muitos outros - e isto pode constuituir uma séria ameaça para a vossa paciência), aqui vos deixo com uma artista, Aldina Duarte, que ainda não terá visto projectar-se devidamente o seu talento e que, para além do mais, é também uma blogueira que, de vez em quando, passa "aqui por casa".

A voz do silêncio (Aldina Duarte-Alberto Correia) Aldina Duarte

sexta-feira, novembro 03, 2006

Variações sobre o mesmo tema 4

Conforme já disse, a partir de certa altura, o fado assistiu a um esforço de renovação no que se refere, fundamentalmente, aos textos.
Amália começou a perceber que não se podia quedar pela linearidade e falta de ambição artística de algumas das letras que interpretava e foi incluindo no reportório poetas como Camões, David-Mourão Ferreira, Ary dos Santos, Manuel Alegre, Pedro Homem de Mello e outros.
Aliás, os próprios poetas começaram a entender que serem cantados por cançonetistas ou fadistas, não era desprestígio, sendo, muito antes pelo contrário, uma das formas de tornar a poesia mais viva, mais partilhada, porventura mais actuante.
Depois dela, muitos outros fadistas foram apostando na qualidade da mensagem poética, o que contribuiu, inegavelmente, para que o fado recuperasse o prestígio que, a dada altura, estava um tanto afectado por anos e anos de conformismo e estagnação.
Artistas como Carlos do Carmo, Camané, Mariza, Kátia Guerreiro, para só citar escassos exemplos oriundos de várias gerações, têm construído uma carreira que demonstra que se podem prosseguir as raízes musicais deste género que é, de facto, nacional, sem cair no mau-gosto e na banalidade.
O seu exemplo, vai frutificando. Novas vozes vão aparecendo, com iguais exigências de qualidade. Por vezes, ainda não tão conhecidas do chamado "grande público" como deveriam ser.
Mas esse será assunto para a última destas variações com que vos tenho vindo a enxofrar esta semana.


Rosa vermelha (J.C. Ary dos Santos- Alain Oulman) Kátia Guerreiro

quinta-feira, novembro 02, 2006

Variações sobre o mesmo tema 3

Falava eu, no texto precedente do elogio da humildade e da aceitação da pobreza, que nos "tempos da velha senhora" eram veiculados através do fado.
A Amália, que, sem dúvida foi dotada pela natureza de um voz única, com uma profundidade interpretativa e dramática invulgar, também não escapou a essa fatalidade. Isto, apesar de, sobretudo a partir dos anos sessenta, ter começado a incluir no seu reportório, poetas e músicos com maior exigência de qualidade.
Mas, um dos seus fados que passou muito pelas nossas rádios, nesses longínquos tempos, dizia coisas assim:
"Numa casa portuguesa fica bem
pão e vinho sobre a mesa.
Quando à porta humildemente bate alguém,
senta-se à mesa co'a gente.
Fica bem essa franqueza, fica bem,
que o povo nunca a desmente.
A alegria da pobreza
está nesta grande riqueza
de dar, e ficar contente."
E tinha outra que descrevia, de igual modo idílico e cor-de-rosa, a vida de um casal pobrezinho mas feliz. Chamava-se "A cantiga da boa gente".
O refrão dizia
"Quando chega a tarde
tarde tardezinha
já o jantar fumega
na lareira da cozinha
os filhos sorriem
o Manel também
não há melhor vida
que aquela que gente tem"
Mas, clandestinamente, havia quem se encarregasse de colocar letras diferentes nas músicas que se popularizavam. Era, também, uma forma de luta contra o regime.
Eis uma versão "diferente" dessa cantiga:
"Não nos falta nada
nesta nossa terrra
temos futebol
e até temos guerra.
Temos Totobola,
fado pra chorar
não temos razão
quando queremos protestar.
Nos bairros de lata
não se vive mal. pois há lá conforto
...espiritual.
Temos Salazar
pra nos garantir
que enquanto viver
andaremos a pedir.
refrão
E pela manhã
pela manhãzinha
bate a pide à porta
entra mesmo pla cozinha.
Revolve o que há,
leva preso alguém...
... não há melhor vida
q´aquela q´a gente tem"


Maria Lisboa (David Mourão-Ferreira- Alain Oulman) Mariza

quarta-feira, novembro 01, 2006

Variações sobre o mesmo tema 2

Conforme vos dizia no post anterior, gosto do fado e não do "faduncho".
O antigo regime, servia-se bastante da chamada "canção nacional", para veicular mensagens de conformismo, humildade aceite, passividade.
Dizendo coisas como:
"os pardais em corridinhas pelo chão,
gostam da nossa pobreza",

ou
"o destino marca a hora,
pela vida fora,
que havemos de fazer
?"
ou
"podes fugir
às leis do teu coração,
mas quer tu queiras ou não
tens de cumprir a tua sina
"
ou ainda
"os filhos sorriem
o Manel também
não há melhor vida
que aquela que gente tem
"
Isso era "o faduncho", a lamechice, a intenção subliminar de contribuir para um clima de não contestação que era necessário manter.
Não quero confundir, entretanto, este tipo de mediocridade, com o fado dito "tradicional" de que há inúmeros exemplos onde a simplicidade temática e musical, resulta em qualidade e valor cultural. Digo eu.
Como é o caso:

Maria Madalena (letra Gabriel Oliveira música popular) Lucília do Carmo
Mas esse sub-produto a que poderemos chamar "faduncho" era acompanhado por outras variantes musicais. A certa altura popularizou-se um termo para englobar esse tipo de música. Era o "nacional-cançonetismo".
Hoje, esse termo terá um equivalente: "música pimba".

terça-feira, outubro 31, 2006

Variações sobre o mesmo tema 1

No resto desta semana, irei publicar diversos textos que andarão, um pouco, à volta do mesmo tema.
E hoje, começo, por vos dizer que, apesar dos muitos problemas que enfrentamos, das muitas asneiras que têm sido feitas, há um bem de que nunca deveremos abdicar. É ele a possibilidade de cada um de nós poder ter as suas convicções, as suas ideias,os seus gostos.
Eu sei que, nem sempre essa liberdade é tão absoluta como teoricamente se admite, mas, a que vamos tendo, ainda nos permite um grau de autonomia de opinião, que é saudável e fundamental.
Houve tempos em que o velho ditado "gostos não se discutem" era apenas uma falácia. Porque, nessas alturas, havia gostos que não eram permitidos; por isso, nem sequer se podiam discutir.
Na música, por exemplo.
Havia compositores, cantores, obras, que não podiam, pura e simplesmente, chegar aos ouvidos de todos nós.
Onde quer ele chegar?, dirá o leitor, nesta altura do texto.
Pois quero chegar a isto: gosto de fado.
É óbvio que respeito e admito totalmente que haja quem não goste ou que até deteste este género de canção.
Mas eu gosto, e comigo está muito boa gente.
Mas do que eu gosto é mesmo de fado e não de "faduncho".
Mas isso será matéria para o próximo texto.



Nasceu assim, cresceu assim (Vasco Graça Moura, Fernado Tordo) Carlos do Carmo

segunda-feira, outubro 30, 2006

A parábola dos rebuçados


Era uma vez um menino que gostava de comer rebuçados.
Não por gulodice desenfreada, mas porque se sentia no direito, de vez em quando, de saborear alguns dos prazeres que, no seu entender, lhe coloriam a vida.
Certo dia, a mãe, que até ali não se tinha verdadeiramente apercebido daquele gosto inocente, decidiu que o menino não mais poderia comer rebuçados.
A criança. desgostosa, tentou perceber a razão daquela interdição.
A progenitora, encolhendo os ombros disse apenas que eram ordens do papá e que o papá tinha todo o direito de dar ordens. E, por outro lado, era perfeitamente natural que nem todos pudessem comer rebuçados.
O menino, naturalmente triste, foi chorar o desconsolo para um canto da rua.
Os amigos do menino, ao saberem da história, juntaram-se todos e foram fazer um grande barulho à porta da casa do menino, chamando alguns nomes pouco bonitos à mãe e ao pai.
Nesse dia, quando o menino chegou a casa, a mãe esperava-o de dedo em riste.
- Diz lá aos teus amigos que não quero barulhos aqui à porta.
E, ouve bem, enqunto eles fizerem barulho, é que não comes mesmo mais nenhum rebuçado.
Se eles estiverem caladinhos, daqui por um mês, é possível que te dê um.
O menino bem argumentou que não fora ele a instigar a manifestação dos amigos, que nada adiantou.
Ficou, no entanto, a pensar que não era bonito a mamã fazer aquela chantagem com ele.
A palavra era forte. Mas com que outro nome poderia ele qualificar aquela atitude?