Estamos em 1971.
Entre os meus meninos da primeira classe estava o Joaquim.
Era dos mais novos de quase um dúzia de filhos. O pai era mineiro, no Pejão. A mãe era mãe. E Deus sabe como era Mãe.
Viviam perto do cemitério de Rio Mau, numa coisa chamada casa, feita de lajes sobrepostas e coberta de telhas portuguesas, tão gastas como os carreiros que nos deixavam chegar ao Alto de S. João.
O homem chegava com o nascer do Sol e encontrava a mulher no aido do porco ou no galinheiro, dando de comer à bicharada. Era aí que, amiudadas vezes, se "servia" dela. Aí tinham o seu espaço de intimidade.
Os "bichos" não tinham linguagem de gente e o seu testemunho não tinha força de lei.
Na "casa" os cachopos começavam a acordar. Antes da escola, havia erva para dar aos coelhos, estrume para tirar dos aidos e a bacia de zinco cheia de roupa suja para levar até à margem do Rio Mau, porque a mãe levava um carrego de filhos pequenos.
Um ao colo, outro pela mão, outro ainda numa giga à cabeça, deitado sobre a roupa menos suja e, se calhar, um outro na barriga, porque Deus a fizera boa parideira e viver em pecado...nunca!
Todos os filhos desta casa eram lindos e não se lhe encontravam piolhos nem "colares" de ferradelas de pulgas no pescoço. Brilhavam de asseio. Mas o Quim tinha um ar angelical que fazia dele "o meu" Quim.
Aprendia com alguma lentidão e desesperou-me algumas vezes.
Um dia achei-o demasiado calmo e ainda mais bonito, mas a sua palidez arrepiou-me. Levei-o ao posto médico, que ficava mesmo ao lado da escola. O doutor Amorim olhou-me assustado e mandou chamar a mãe do menino.
O Quim foi levado para o Hospital de S. João no mesmo dia.
Estava muito doente. Terrivelmente doente.
Isolaram-no durante algumas semanas. Ia visitá-lo ao sábado à tarde. Perguntava-me pelos pais, pelos irmãos, pelos amigos. Queria muito a sua mãe, mas não havia dinheiro para pagar a "carreira" para o Porto, depois o táxi até o hospital e ainda o bilhete de ingresso para a visita.
A pobreza era tão pobre que, hoje, tudo isto é impensável, quase ridículo.
A minha angústia crescia com o sofrimento do Quim, mas havia barreiras que não podia transpor.
Chegou o tempo de férias.
Casei num domingo de Agosto.
Faltei dois sábados à visita.
Quando voltei ao hospital, procurei o meu rapaz e não o encontrei. Regressara a casa naquela semana, mas teve ainda tempo, antes da partida, para falar à enfermeira sobre a "sua professora" e da saudade que sentia dela.
Enterraram-no junto do muro que separava o cemitério da leira dos seus pais, onde tantas vezes brincou e foi menino e, onde, de foicinha na mão, cortou erva para os animais e foi homem.
Não consegui deixar, na pequena sepultura, as flores brancas que levava. O meu Quim não estava ali. Não podia ser a sua última morada. Fui levá-las à sua mãe.
Pousei-as na soleira da cozinha.Sei que as encontrou e adivinhou logo que eram da professora do seu menino.
Tenho a certeza de que, desde então, o presépio da capela de S. João de Rio Mau (Sebolido) tem um Menino Jesus lindo, lindíssimo, e eu sei que ganhei um Anjo Protector.
Sinto-o muitas vezes.
Maria de Lourdes dos Anjos
Professora Aposentada do 1º Ciclo e escritora
(in "Nobre Povo" ed. Gailivro 2008)
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