Conheci o B. no último ano em que estive na direcção da escola onde trabalhei.
Era um "aluno problemático", oriundo de uma "família desestruturada".
Frequentemente, o B. vagueava pela escola (onde vinha sobretudo para almoçar e merendar), não ia às aulas e praticava pequenos delitos. Era agressivo (principalmente quando o tratavam pelha alcunha que já vinha da família, pois pouca gente conhecia o seu nome próprio), subtraía objectos e mentia sobre tudo e nada.
Diga-se de passagem, que os professores da turma onde estava colocado, preferiam vê-lo fora da sala. Por isso, quando eu o apanhava a "vadiar" e o obrigava a ir para a aula,os meus colegas "torciam o nariz".
Quando o B. era conduzido ao meu gabinete, porque tinha atirado mais uma pedra a um colega ou porque tinha roubado uma esferográfica ou um estojo ou um relógio, era certo e sabido que começava por gritar a sua inocência, ao mesmo tempo que tremia quase convulsivamente.
Reparava, então, que na velha e suja mochila, não havia mais do que uma capa de argolas sebenta, com duas ou três folhas com algumas garatujas.
O B. , ao fim de seis anos de escolaridade no 1º ciclo, quase não sabia escrever.
Tive de o castigar, mais do que uma vez, aplicando os regulamentos disciplinares em vigor. Algumas vezes o levei a casa, situada num bairro social.
Mas eu sabia que o B. estar uns dias suspenso da frequência da escola, pouco adiantava. Ele regressava e voltava a prevaricar.
Aliás, este comportamento desviante, era estimulado pela própria família. O pai, alcoólico e a mãe, vivendo apenas do rendimento mínimo, davam cobertura aos "desvios " do filho, de que até tiravam partido.
Recusei-me a acreditar que o B. não tinha solução.
Assim, quando deixei o cargo de Presidente do Conselho Executivo, fiz questão de colocar o B. numa classe. de que seria professor e director de turma.E enfrentar o desafio que o B. constituia.
E aí, com a colaboração da excelente equipa de professores que me acompanhava, com avanços e recuos, conseguimos, pouco a pouco, que o B. se fosse modificando.
Por exemplo, arranjei-lhe um cacifo, de que só eu e uma funcionária tínhamos a chave, para guardar o material escolar que lhe era distribuído. Assim, o B. teve cadernos e livros durante todo o ano pois não os levava consigo no fim das actividades escolares.
Nas aulas, que passou a frequentar assiduamente, todos ajudavamos o B. a superar as imensas dificuldades de aprendizagem que carregava.´Foi transitando de ano. Certamente que, não tenho problemas em o reconhecer, concedendo-lhe o "facilitismo" que era condição básica para que o B. sentisse algum sucesso e subisse um pouco a sua auto-estima.Aliás, ainda um dia hei-de aqui falar sobre essa candente questão do facilitismo...
Estive com ele dois anos.
O B. transfigurou-se. Deixou de cometer esses delitos de outrora. A comunidade escolar deixou de ter motivos para trazer o B. sempre "debaixo de olho". "Quem o viu e quem o vê" dizia muita gente.
Ultimamente estava a tentar concluir um Curso Profissional.
Mas, decididamente, o B. nasceu do lado errado da vida.
Na semana passado, foi até à praia. A notícia que veio no jornal, falava de um jovem, aparentando 18 anos, que para ali fora sozinho, sem qualquer documento. Morreu afogado e foi conduzido para o Instituto de Medicina Legal. Só mais tarde seria identificado.
Ao fim do dia, uma colega ligou-me a dar a triste novidade.
O B. chegara ao fim da sua rápida e atribulada existência.
Fui levar-lhe um ramo de flores.
O B. estava com ar sereno. De gravata.
Terá sido a única vez que usou gravata.
Adeus B.
Tentámos ajudar-te. Mas há coisas que parecem não se poder contrariar.
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