sexta-feira, janeiro 05, 2007

Uma história real.


Há muitos, muitos anos, era uma vez uma menina que vivia na aldeia, com o pai.
Apenas com o pai, já que a mãe, quando a menina era ainda uma criança, padeceu de um mal que na altura não tinha cura, e deixou-a mais só neste mundo hostil e inóspito. Uns anos mais tarde, apareceu, na aldeia onde vivia, um homem, bastante mais velho e que vinha de uma grande cidade.
O homem, que deu conta dos haveres que, então, o pai da menina possuia, arrastou-lhe a asa e menina, ingénua e desamparada, encantou-se com o senhor.
Passado algum tempo, ficou grávida e casou, já com uma barriguinha de seis meses.
Teve, depois, uma linda menina.
Mas, naquele tempo, a mortalidade infantil, era um facto assustador.A filha morreu com menos de três meses.
A jovem mãe ficou inconsolável, chorou lágrimas de sangue.
A ansiou ter outro bebé.
Então, todos os meses, quando sentia chegar a menstruação chorava de novo.
E ficava a esperar mais um mês.
Até que, finalmente, conseguiu de novo engravidar e, com que desvelo e emoção acompanhou a gestação do novo ser.
Quando o rapaz nasceu, ela não deixava de o vigiar noite e dia, para que nada de mal lhe acontecesse.
Deu-lhe tudo o que podia e o que não podia. É que entretanto, a vida tornou-se cada vez mais difícil. O pai morreu e o homem, de início tão sedutor, não se revelava particularmente diligente na angariação de meios de vida para o lar. E, ainda por cima, a breve trecho, começou a tornar a vida da menina-feita-mulher, um martírio. Agressões, traições, imposições absurdas, de tudo ela sofreu.
Como tantas vezes acontece, a jovem mãe, apostou tudo naquele filho que tanto ansiou. Queria que ele tirasse um curso, "que fosse alguém na vida".
Mas, com os magros recursos de que dispunha, depressa entendeu que só poderia criar condignamente aquele filho.
Então, e porque naquele altura a contracepção era rudimentar, quase se limitando ao preservativo, que o homem se recusava a usar (e era ele quem mandava) a menina-feita-mulher, agora chorava quando a menstruação não chegava.
E, nessas alturas, lá ia, e sempre com uma infinita tristeza a torturar-lhe as entranhas, recorrer às "curiosas" que faziam "desmanchos" baratos. Tão baratos que, por vezes as coisas corriam muito mal.
Por mais do que uma vez, a menina-feita-mulher, esteve às portas da morte.
Mas sempre amando ferozmente o filho que ansiou e defendendo o seu futuro.
Muitos anos mais tarde, haveria de desejar outro filho (as condições já eram um pouco melhores) e acolheu-o com o mesmo amor e carinho com que recebeu os filhos que sentia poder criar.
Sempre disse e assumiu:
-Eu só tive os filhos que pude criar.Se tivesse mais dinheiro, teria todos os filhos que aparecessem.
Esta menina-feita-mulher. foi aquela que me pôs no mundo, a quem devo quase tudo o que consegui alcançar na vida. A quem amei violentamente, que recordo com imensa saudade e com um respeito do tamanho do mundo.
Assim, quando ouço gente a despejar insultos e peçonha sobre as mulheres que tiveram, como última solução, de recorrer a tão traumatizante medida, só me posso sentir revoltado.
Recentemente, o Papa, ao comparar o aborto ao terrorismo, excedeu tudo o quer poderia ser dito.
Na tumba onde minha mãe jaz há mais de dois anos, foi despejado mais um anátema. Tão terrível quão injusto.
Não o perdoo!
Criminosa, terrorista, a minha mãe nunca o foi.
Reflecti bastante antes de publicar este texto.
Mas sei que, se ainda fosse viva, a minha mãe faria questão de ver conhecida esta história real.
Que, quer se queira quer não, atingiu, atinge e atingirá, milhões de mulheres em todo o mundo.
Mesmo, estou certo e ciente, algumas que aparecem por aí a lançar definitivas diatribes sobre tais actos.
Perante os quais, bem o sabemos, terão de ser encontradas as soluções que o afastem cada vez mais da vida das mulheres.
Porque, sei-o por este testemunho tão próximo e íntimo, que ninguém, aborta com gosto.
Fá-lo sempre com amargura, sofrimento, que deixam marcas para toda a vida.

Sem comentários: