Viveste oitenta e dois anos de uma vida, que, como dizias, passou num instante.Onde amargaste, quase sempre em silêncio, muitas horas de pesadelo.Foste mais uma das muitas vítimas da violência doméstica a quem nada mais restava do que sofrer e aguentar. Nesse tempo, a doutrina oficial dizia que a mulher tinha de obedecer e os seus direitos não contavam.
Mas tiveste sonhos. Que o bebé que trazias nos braços haveria de ser "alguém na vida". E fizeste tudo o que podias e o que não podias para que esse sonho fosse realidade. Lutaste, correste, até passaste fome para defenderes, qual leoa ferida, as tuas crias. E conseguiste a vitória de concretizares alguns desses sonhos.
Mas só tiveste os filhos que soubeste que poderias criar condignamente. Por isso mesmo, nunca o escondeste, abortaste, quando viste que irias colocar no mundo alguém a quem não poderias proporcionar as condições de vida que julgavas ser mimimamente aceitáveis. Nesse aspecto foste apenas mais uma nas infindáveis legiões de mulheres que utilizaram esse último recurso,em condições de risco violento, que a hipocrisia oficial agravava.De uma das vezes que o fizeste, quase morreste.
Acreditaste, com a intuição que vinha, secretamente, do mais profundo do teu ser, que o mundo poderia um dia ser melhor. E, à tua medida, lutaste por essa convicção.
Foste a minha confidente de todos os dias. A quem se contam as coisas mais íntimas. De quem se ouvem as coisas mais íntimas.
Dizias, às vezes, olhando as tuas mãos pequenas e enrrugadas : "que feias!". Mas eu, invariavelmente, respondia-te : " são as mãos mais valiosas do mundo!". Ou: "a minha vida passou-se , e que fiz eu?" Respondo uma vez mais: " deixaste uma obra grandiosa". E eu sei qual a dimensão dessa obra.
Porque há por aí milhões de vidas valiosas que ficam no anonimato, ofuscadas pelas vidas que rompem, pelo acaso às vezes pouco explicável, os véus que escondem o que é quotidiano e aparentemente vulgar.
Gostavas de flores. De rosas, sobretudo. Trouxe, e plantei no meu jardim, um ramo da última roseira vermelha que plantaste. É uma forma de te manter comigo.
À falta de melhor, aqui fica,em tua memória uma rosa virtual, neste dia em que faz um ano que me deixaste, Maria José, minha mãe!
Que falta ainda me fazes!
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