sexta-feira, dezembro 23, 2005


Natal, 1973, Dili, Timor.
Era a "época das chuvas" e o calor sufocava com intensidade acrescida. O fardo da lonjura pesava com mais força naquela altura do ano.
As garrafas de vinho da "metrópole", os nacos de presunto e as postas de bacalhau já tinham chegado uns dias antes, mimos com que os familiares nos queriam dizer que estavam connosco.
Na casa onde morávamos não havia presépio, nem pinheiro, nem iluminações. Para fazer de conta que não ligávamos nada ao Natal.
A panela a fumegar, as piadas de circunstância, um tanto nervosas, mais um cigarro que se fumava.
Já as batatas começavam a ficar cozidas quando chegou o Cabo "Marcelo" (era a alcunha justificada pela relativa parecença com o Caetano, Presidente do Conselho):
- Ó pás! Tenho ali duas gajas que encontrei na rua. Se vocês não virem inconveniente, elas comiam cá com a gente.
Depois de um instante de surpresa, entreolhamo-nos e, encolhendo os ombros:
- Por que não? Manda-as entrar.
Eram duas prostitutas de vestido muito modesto, pele escura e olhar meio assustado.
Um riso tímido, encostadas uma à outra, foram-se sentando, no banco corrido que servia a longa mesa improvisada que mobilava a sala de jantar, situada no alpendre da casa.
Começada a ceia, desde logo se notou que as mulheres não apreciavam mesmo nada as batatas com bacalhau. Mal lhe tocaram.
Mas beberam do vinho tinto da "matrópole". Beberam muito. Assim como nós. Cada qual tentando esquecer algo que incomodava, naquele dia, mais do que nos outros.
Acabada a refeição e porque já se ouviam risadas e gritos nas estrada de Taibesse que ficava em frente à casa, fomos lá para fora.
Ébrios, cambaleantes, dezenas de soldados, furrieis, alferes e até um polícia dos "de cá", gargalhavam, corriam, empurravam-se.
Alguém roubou o capacete ao polícia, que não fez caso algum, abraçado a um soldado a quem, muito provavelmente já tinha multado anteriormente (era conhecido por ser um impenitente caçador do coimas). Outro, montou na moto da autoridade e foi dar uma volta.
Naquela noite, valia tudo.
Ali estivemos até que resolvemos ir até ao quartel, onde, um dos nossos estava de serviço.
As mulheres, foram connosco, cada uma delas como pendura de dois de nós. E, sacrílego atentado à disciplina militar, entraram também no aquartelamento.
Mas ainda havia vinho em casa. E música. E luz.
O que se seguiu, foi mais fuga do que sexo. Ou a invenção de afectos compartilhados que bem sabíamos serem uma auto-mistificação, mera farsa que se desempenha em desespero de causa..
Naquela noite valia tudo. Mesmo a transgressão das regras que, até ali, tinham sido uma espécie de código de honra.
Quando o sol rompeu, fomos levá-las à "palapa", humilde barraco onde viviam, no bairro mais pobre da cidade.
Dissipados os vapores do álcool, a ressaca era muito mais do que física, e batia como um vulcão.
Como se, de repente, tivéssemos acordado, pela primeira vez, para aqueles muitos milhares de quilómetros que nos separavam das árvores de natal, das ruas iluminadas, dos odores de canela, dos embrulhos coloridos, que, afinal, ali não estavam.
Natal, 1973, Dili, Timor.

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