sábado, abril 12, 2008

NATUREZA VIVA


Há muito, muito tempo, num cantinho qualquer deste mundo, ainda cheio de mistérios e incertezas, que habitamos, aconteceu, sabe-se lá como, o primeiro grãozinho de vida.
Dessa vida, tão minúscula e frágil, lentamente, muito lentamente, vieram a suceder outras vidas, já menos pequenas e frágeis, que se foram espalhando pela Terra.
E assim as montanhas, as planícies, os vales, os rios, os lagos, os mares, as grutas, os céus, foram-se povoando de seres, de todas as formas e cores.
Com o decorrer dos séculos a vida foi-se tornando mais exigente, os corpos foram-se aperfeiçoando, resistindo cada vez melhor, ao sol e à neve, à chuva e à trovoada, às secas e aos dilúvios.
A princípio, pequenas células isoladas, logo plantas, animais, da erva delicada e rasteira à altiva e imponente árvore, da insignificante e silenciosa larva ao gigantesco e atroador dinossauro, tudo foi surgindo.
E nesta história feita de um lento escorrer de minutos que se amontoam em dias, anos e séculos, quase sem se dar conta, foi surgindo uma vida que transportava em si uma qualidade que a distinguiu de todas as outras vidas e que era a possibilidade de aprender, de inventar, de compreender, de amar.
Esta era a vida de todos nós, dos homens e as mulheres, que foram construindo as casas, as ruas, as estradas, as fábricas, os livros, as máquinas, as armas, os perfumes, os remédios, os venenos, as músicas, as danças.
Tendo a capacidade de amar, os homens e as mulheres, desde logo descobriram a alegria de criarem outras vidas, pequenos homens e mulheres que, no princípio, têm de ser defendidos e protegidos para que possam, um pouco mais tarde, seres eles próprios sementes de outras vidas.
É porque temos atrás de nós e à nossa frente toda esta história interminável de vidas tão diversas, que não faz nenhum sentido inventarmos distinções, barreiras, que nos separem, por cores, por raças, por formas de pensar.
Afinal, todos irmãos numa mesma aventura, passageiros de uma mesma viagem, que dura um mero instante, somos, apenas, um traço de união entre o passado e o futuro.



(Texto de introdução que escrevi para o manual escolar de Ciências na Natureza-6º ano, “Natureza Viva", de que fui co-autor, em 2001)

sexta-feira, abril 11, 2008

Adeus, V.

O V. entrou, como funcionário auxiliar de acção educativa, para a escola onde trabalhei, vindo de um outro sector da função pública, que nada tinha a ver com Educação.Estava eu no Conselho Executivo.
O V. quando chegou, não tinha a formação adequada para lidar com jovens estudantes.Mas, rapidamente, "vestiu a camisola" e, a breve trecho, já era um excelente elemento da equipa. Da "nossa equipa".
Trabalhador dedicado e empenhado. De trato afável, sempre pronto para o que fosse preciso fazer. Desde uma reparação ou manutenção de instalações, ao chamado "serviço de módulo", em que se dá assistência a professores e alunos, durante o funcionamento das aulas, até à vigilância da portaria.
Mas, o V. adoeceu. Gravemente.
Teve problemas pulmonares complexos. Com hemoptises frequentes. Com internamentos prolongados. Teve de colocar um pacemaker.Voltava ao serviço, mas, debilitado, já sem forças para ser o V. que sempre foi.
Foi a juntas médicas, carregado de relatórios, dos médicos que o assistiam. Esperançado de que lhe dessem a aposentação por incapacidade, que todos julgávamos ser óbvia.
Mas, não!
"Apto para trabalhar".
Ele, a quem os clínicos impediam de fazer esforços, de apanhar frio.
Entretanto aposentei-me, e, por vezes, falava com o V. Estava agora a prestar serviço na biblioteca, onde, por bom senso, o actual órgão executivo da escola o colocou.
"Apto para o serviço".
Há dois dias, foi internado, de urgência, com mais um grave problema de saúde.
"Apto para o serviço".
Vai hoje a enterrar, o V.
O V. cujo relacionamento com os outros sempre cativou alunos, professores e colegas. Que hoje andavam mais silenciosos, pesarosos pela perda de "um de nós".
"Apto para o serviço".
Mais um caso de insensibilidade das tais "juntas médicas".
Só que este, quase de certeza, não virá nos jornais.
Adeus, V. Obrigado pelo muito que deste à escola que foi a minha!

quinta-feira, abril 10, 2008

Gostei desta

"É nesta política de galinheiro que estamos. De galinheiro e não de aviário. As crianças, os jovens,na sua maioria, vão cada vez mais ao cercado para encontrar os parceiros, deambular, cacarejar, mostrar as penas, arrastar a asa, bicando-se uma vez por outra, numa assustadora alienação. Por isso se exige que se discutam com profundidade o velho e o novo mandato atribuídos à escola. Se clarifique, de uma vez por todas, o que a sociedade precisa e quer.
E não se esqueça que um novo sistema educativo não pode ser pensado desligado, menos ainda desarticulado, de outros subsistemas sociais - também eles a precisarem de reconfiguração- sejam o sistema de saúde, de formação ao longo da vida, da família, das igrejas, dos partidos e movimentos sociais, do atendimento de crianças em risco e de inclusão, de integração social ou as redes de formação artística, cultural, desportiva,de ocupação formativa de tempo livre, entre outras. A sociedade portuguesa precisa de clarificar e definir o seu modelo social, do qual a educação é apenas um dos elos da rede que deve permitir uma vida social saudável.
Não nos podemos calar perante o apodrecimento da situação reinante. Não aceitamos esta escola antiquada, cada vez mais reduzida a um espaço totalitário, uma espécie de cercado, síntese do quartel (na organização), da prisão (no controlo) e do galinheiro (na aprendizagem e na vida)."
José Paulo Serralheiro, in "A Página da Educação" , Abril 2008

quarta-feira, abril 09, 2008

Afinal, sou disléxico

Depois de anos a lidar com alunos disléxicos, a ler coisas sobre esta disfuncionalidade, acabo por descobrir que, afinal, também sou atacado por este contratempo...
De facto, quando uso o teclado do computador, com enorme frequência, troco letras, como letras, repito letras, tropeço nas letras e outras trapalhadas do género.
Então, se estou com mais pressa, é mesmo um desastre.
Pois, para ilustrar o que digo, dei-me ao trabalho de coleccionar algumas destas pérolas que me sairam, ao teclar diversos textos.
Façam lá o exercício de tentar reconstituir a palavra que, em cada caso, eu queria escrever.

Quqluqer
Frenre
Poerugal
Orçamneto
Poruqe
Tinah
Centrias
Tarzendo
Ocstumes
poruq
paerceberem
soa
publcou
Trnasformismo
Originias
Qunado
Ianda
Tardiaemnete
Alrgia
Olahr
Terarto

Então? Descobriram a palavra escondida em todos os casos?

terça-feira, abril 08, 2008

Bicicletas para alugar.

Quando eu era menino, havia umas pequenas e modestas oficinas que tinham bicicletas para alugar. Um quarto de hora, um escudo.
E isto, porque a maioria de nós, não tinha posses para ter bicicleta própria. Quem tinha, eram apenas os filhos de classes mais endinheiradas.
Assim, era a estes pequenos estabelecimentos que recorria, se queria andar de bicicleta. Foi nestes velocípedes, a maior parte deles já algo desconjuntados, que aprendi a dar as primeiras pedaladas.
Depois, pouco a pouco, este negócio foi deixando de ter condições para existir. E isto porque cada vez mais crianças e jovens passaram a ter condições para adquirir veículo próprio.
Hoje já ninguém vê este tipo de stands. Só se alugam bicicletas em locais turísticos, e para clientes seleccionados.
Ou seja, muitas vezes sem nos darmos conta, no espaço de uma geração, há pequenas e grandes mudanças que, gradualmente, vão ocorrendo. E, mesmo persistindo problemas enormes para resolver, ainda persistindo gritantes desigualdades e carências, poderemos concluir que, apesar de tudo, vamos progredindo.
Certamente que mais lentamente do que seria necessário.